Argélia

De Sofá em Sofá pela Argélia #4: Timimoun

Timimoun. Demorei meses a atinar com este nome. A cidade vermelha representava o ponto mais a sul da nossa viagem, mas desenganem-se aqueles que pensam que este é o sul da Argélia. Para chegarmos ao “Sul Profundo” (Deep South) precisaríamos de percorrer mais 1500 quilómetros. Ficará para a próxima!  

Oito horas depois de sairmos de Ghardaia, quando os nossos olhos já não conseguiam ver mais areia, lá estávamos nós em Timimoun. Chegar ali era sinónimo de vitória por nunca termos sido “apanhados” pela polícia nem escoltados. Também já não corríamos o risco de termos de voltar para trás e falhar o “sul”. Motivos mais que suficientes para celebrarmos!

  

Finalmente, uma mulher argelina!  

Desta vez, para variar, não tínhamos um anfitrião, mas sim uma anfitriã! A Djoe era médica no único hospital de Timimoun – que serve uma área absolutamente descomunal – e a única especialista de otorrinolaringologia.  

Tinha-a encontrado através do perfil de Couchsurfing do namorado dela, o Sid, que estava a tirar o doutoramento em Kuala Lumpur. Como parecíamos de confiança, fomos aprovados para ficar na casa dela, na aldeia dos médicos.  


Quase todos os médicos vêm através de um programa de incentivo do governo para combater a falta de especialistas nas zonas mais remotas. Têm alojamento gratuito, contas pagas, recebem mais e trabalham 20 dias (com fins de semana) e tem 10 dias de férias a seguir. Creio que também lhes pagam algumas viagens até à cidade de onde são naturais. Não é um mau negócio!  

A Djoe recebeu-nos com um grande sorriso e a falar francês. Entretanto concluímos que o inglês dela era muito melhor que o meu francês e a partir daí foi uma festa! Nunca pensei que íamos acabar a ver o pôr-do-sol no meio do deserto, com chá feito numa fogueira improvisada e a ouvir bossa nova, que ela adorava. Os argelinos não paravam de nos surpreender.  


Vamos fazer um picnic noturno nas dunas!  

Quase nos começámos a rir quando recebemos este convite. Claro que havia um plano aleatório preparado para a nossa chegada! Mas antes do tal picnic, íamos aproveitar a luz do dia que nos restava e passear pelo centro de Timimoun, que nos recebeu com as suas ruas semi desertas de uma sexta-feira à tarde (dia sagrado para os muçulmanos).  

O nome “cidade vermelha” não foi dado ao acaso. Todos os edifícios vestem esta cor. À semelhança de Ghardaia, tudo é construído com materiais da terra, mas num formato mais tosco. Um dos problemas da região é tentar manter as aldeias históricas de pé, por que as estruturas requerem muita manutenção. Espero que consigam, este é um lugar único. 


Ainda aprendemos sobre um sistema de irrigação milenar: as foggaras. Esta era uma forma de distribuição de água por diferentes terrenos agrícolas e, independentemente da classe social, todos recebiam a mesma quantidade de água.  


A nossa tarde acabou no lugar com o pôr-do-sol mais épico de Timimoun, o Hotel Gourara. Este hotel, construído de forma a celebrar a arquitectura da região, é aberto ao público e o lugar perfeito para observar o sol a esconder-se entre as dunas.  


E foi nessa direcção que nos lançámos para o nosso picnic. A Djoe já tinha planeado e cozinhado tudo, incluindo uma tagine de azeitonas, pão de milho, batatas fritas, salada e sabe-se lá mais o quê. Enquanto admirávamos as estrelas num céu limpo e livre de poluição luminosa, devorámos a deliciosa refeição da nossa anfitriã. Não podíamos ter pedido mais! 

Estamos em África!  

A Argélia é o maior país do continente africano e isso reflecte-se na diversidade dos seus povos. Aqui, as cores e os traços misturam-se e pela primeira vez sentimos que estávamos mesmo em África, à porta da casa dos Tuareg. Um dos lugares onde isso é mais visível, é nos mercados de sábado. 

O mercado coberto tem banquinhas que vendem um pouco de tudo. Há remédios feitos de veneno de escorpião, maquilhagem, amendoins e tâmaras. Já no mercado ao ar livre podemos encontrar comerciantes do Niger, Mali, Líbia, Chad entre outros países da região. Vende-se roupa, brinquedos, tecnologia, frutas e legumes. Aqui as mulheres estão por todo o lado! Há azáfama, regateiam-se preços e encontrámos uma atmosfera mais descontraída do que o que tínhamos experienciado em Ghardaia.  

Depois do mercado ainda visitámos algumas aldeias meio abandonadas. As casas que já estão demasiado danificadas para habitação transformam-se em estábulos. O ar degradado confere-lhes um certo charme e carisma.  


O último lugar que posso recomendar no centro de Timimoun é este restaurante. Perto dos correios e da padaria, comemos um estufado de camelo com um couscous inacreditável. O couscous de Timimoun é especial, é feito à mão. Eu nem sabia que se podia fazer couscous à mão! A refeição para os três custou-nos 4.5€. Uma das coisas que já tínhamos reparado era que nós comíamos sempre mais do que os argelinos que estavam connosco. Claramente estamos habituados a uma quantidade de comida, particularmente de proteína, acima do normal na Argélia.  

Maravilhas abandonadas nos arredores de Timimoun  

Para nosso deleite, a Djoe tinha pedido ao marido de uma senhora que trabalha no hospital para nos ir mostrar os lugares mais interessantes nos arredores da cidade.  

A primeira paragem foi o Ksar de Ighzer. Ksar é sinónimo de vila ou aldeia fortificada. Por serem feitos de argila e estarem ao abandono, este tipo de estrutura parece que está a derreter. Mesmo assim, é impressionante pensar que ali viviam várias famílias, havia uma mesquita e comércio.  


Os ksars existem um pouco por toda esta região. São todos bastante semelhantes e um testemunho efémero da realidade de viver numa das zonas mais remotas e agressivas do nosso planeta.  

Passámos por mais alguns lugares, cujo nome desconheço, com vistas lindas sobre o deserto e os seus oásis. Antes de nos dedicarmos à difícil tarefa de bebericar chá a ver o pôr-do-sol, parámos em Taguelzi, e entrámos nas ruínas da sua fortaleza. Do topo, observámos aldeias esquecidas de onde de vez em quando vinha um longo “muuuuuu” ou “bhaaaaa”. Os seus moradores originais trocaram a arquitectura da terra pelo conforto das construções modernas e as suas antigas casas passaram a ser o lugar onde guardam o gado. Pergunto-me se daqui a cinco ou dez anos, alguma destas estruturas ainda estará de pé.  


Chá de menta, vizinhas inesperadas e conversas de mulheres  

Moídos depois de um dia activo debaixo de um sol escaldante, parámos para um lanche e chá com vista para as dunas. Recolhendo a pouca madeira que havia, o nosso guia não oficial acendeu um fogo que teimava em pegar.  

Enfiando cerca de um quilo de açúcar dentro do bule e umas folhas de menta, o chá lá se fez enquanto a Djoe nos mostrava as suas músicas brasileiras preferidas. Pode ter sido a primeira vez que Gilberto Gil ecoou no deserto argelino.  

Mas não nos podíamos distrair. Tínhamos um jantar para cozinhar em casa!  

Munidas de beringelas do jardim e de um panelão de farro, a Djoe e a sua amiga cozinharam-nos uma refeição deliciosa. Uma das coisas que mais gosto de cozinhar na casa das outras pessoas, é que para além de aprender receitas, há uma certa cumplicidade que se gera enquanto se picam cebolas e se descascam batatas.  

Ali, sem homens por perto, pudemos conversar sobre a condição das mulheres na sociedade argelina. A maior angústia pareceu-me ser a falta de controlo sobre decisões que não deveriam pertencer a mais ninguém. Com quem namorar, com quem viver, com quem dormir… isto vindo de uma pessoa com uma família moderna (para os padrões argelinos), do norte do país, que viaja, etc.  

Não existe raiva ou menosprezo pelo lado mais conservador do país nem pelas pessoas que querem viver dentro destes moldes. Existe apenas uma vontade de se ser livre de escolher.  

O jantar foi servido no pátio e enquanto nos lamentávamos por esta ser a nossa última refeição juntos, ouvimos alguém a bater na porta. Era a vizinha com o maior prato de couscous que alguma vez vi na vida. E que belo couscous que era! 

Na Argélia, quando alguém traz uma prenda ou comida, o saco onde essa oferta veio tem de ser devolvido com algo lá dentro. Nesse dia a vizinha ganhou uns vegetais do quintal. A Djoe, por ser médica, também vai recebendo algumas prendas, incluindo coentros, ovos e até galinhas.  

Nessa noite conversámos pela noite dentro sobre socialismo, colonialismo, direitos humanos e muito mais. A nossa anfitriã era uma mulher inspiradora, cheia de garra, intelectual, de pensamento livre, altruísta e com uma grande vontade de melhorar o seu país. Foi uma honra conhecê-la.  

Dicas e informações rápidas:  

Tours no deserto: Se não tiveres um senhor fofinho para te levar a conhecer as várias pérolas à volta de Timimoun como nós, podes contactar alguns hotéis em Timimoun e tentar organizar um tour. Esse era o meu plano original e contactei vários através do Facebook e email. Eles não são muito rápidos a responder, por isso tentaria planear com cerca de duas semanas de antecedência.  

Ksar de Draa: Só soube que este lugar existia uns dias depois, por isso não tive oportunidade de o visitar. Contudo parece-me ser um dos lugares mais curiosos da Argélia e como tal, fica aqui a minha recomendação. Suponho que os mesmos hotéis ofereçam uma tour até lá, simplesmente terás que pagar um pouco mais por que é preciso um jipe.  

Centre algerien du patrimoine culturel bati en terre: Antes de sairmos em direção a Taghit ainda visitámos este centro cultural. É imperdível. Um exemplo fantástico da arquitetura da região e um lugar que tenta preservar esta forma de arte.  

Conduzir até Timimoun: Conseguimos fazer a viagem toda sem nunca sermos parados num check point da polícia. Havia uma pequena possibilidade de não nos deixarem seguir para sul ou de termos de ser escoltados se fossemos “apanhados”. Felizmente não aconteceu, mas vale a pena estar preparado e ter o contacto do hotel ou host à mão caso seja necessário. Pelo que percebi, os turistas só podem ir nos autocarros diurnos de Timimoun até Ghardaia e vice-versa.

Alfacinha germinada e cultivada num cantinho à beira mar plantado, a Inês tem uma certa inquietação que não a deixa ficar muito tempo tempo no mesmo sítio. Fez Erasmus em Paris, trabalhou em Istambul e em Portugal, fez um mestrado em Creative Advertising em Milão e agora trabalha no Reino Unido. Viajar, criatividade, cozinhar, dançar e ler são algumas das suas paixões. A combinação de algumas delas deu origem a este blog, o Mudanças Constantes. Bem-vindos!

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