Argélia

De Sofá em Sofá pela Argélia #3: Ghardaia e o Vale do M’zabe

Tínhamos pela frente a jornada mais longa até então: íamos para Ghardaia. Não é de admirar termos de percorrer tantos quilómetros (500 a partir de Biskra) para alcançar este conjunto de vilarejos perdidos no Vale do M’zab. Quando lá chegamos apercebemo-nos que não viajámos apenas no espaço, mas também no tempo.

Não posso dizer que as estradas argelinas sejam particularmente interessantes. Afinal, estávamos a atravessar o deserto! Há sinais de “perigo de camelo”, areia, pó e claro, os ocasionais camelos.


Antes de entrarmos por uma estrada onde não havia nem uma amostra de civilização, parámos para arranjar almoço. Éramos claramente o maior acontecimento do mês em Djamaa. Para ver se atraía menos olhares de espanto embrulhei-me num lenço – acho que a minha falta de jeito só fez pior – e entrámos num restaurante de fast food. Entre francês, inglês e gestos lá nos fizemos entender e conseguimos uns wraps de frango. O rapaz que nos atendeu incluiu duas Coca-Cola grátis no saco, enquanto nos indicava com um grande sorriso, que era oferta. 

Apesar de nenhum de nós gostar de Coca-Cola, o gesto aqueceu-me o coração!

“Isto é hospitalidade M’zabite”

O nosso anfitrião em Ghardaia tinha caído do céu. Atendendo ao meu pedido público no Couchsurfing, o Baelhadj ofereceu-se para nos hospedar. As reviews dele era tão incríveis que pensei que teríamos que lhe pagar algo por tanta amabilidade e generosidade. Afinal não, era tudo “hospitalidade M’zabite”.

Para clarificar o que quero dizer por amabilidade e generosidade:

  • Ficámos na casa de fim de semana do nosso anfitrião. Tínhamos a casa toda para nós. Um paraíso no meio do Vale do M’zabe.
  • Não pagámos uma única refeição. A mulher do Baelhadj preparou várias refeições deliciosas para nós.
  • Tivémos direito a visitas guiadas com os amigos dele, que ele convida por não conseguir comunicar muito bem em inglês.
  • Convivemos com vários donos de negócios locais que estão a desenvolver a região
  • Conhecemos o arquitecto da mais recente aldeia do M’zab


Foram dois dias maravilhosos onde aprendemos muito sobre a cultura M’zabite. Isto tudo aliado à beleza destas aldeias que preservam as suas tradições e cultura como poucos lugares no mundo – para o bom e para o menos bom – tornaram este pedaço de viagem num dos mais interessantes.

Para não me alongar numa descrição detalhada sobre cada momento, vou partilhar os meus lugares e interações preferidas!

Beni Isgen: fundamentalismo, regras e comunidade

Creio que já não existam muitos lugares no mundo como Beni Isguen. A mais pitoresca das cinco aldeias históricas do M’zab foi o nosso cartão de visita para a região. Com o sol já baixo, as cores quentes que caracterizam a arquitectura M’zabite tornavam-se ainda mais intensas.


À entrada somos logo lembrados que ali há regras. Não se fotografam pessoas. Não se entra com roupas reveladoras. Não se entra sem guia.

Nós tivemos a sorte de estarmos com duas pessoas locais e como já era tarde, escapámo-nos ao guia oficial e seguimos pelas ruas que permanecem iguais ao que eram há mil anos atrás.

Aqui aprendemos que todas as vilas do M’zab seguem a mesma estrutura. Situadas numa colina e rodeadas por uma muralha, na parte mais baixa há um mercado, e a partir daí fluem ruas estreitas onde habitam os comerciantes e agricultores locais. Fora das muralhas ficam os cemitérios.


As casas são construídas com materiais da região, como argila, sendo feitas para se adaptarem à amplitude térmica do deserto e às suas tempestades de areia.

Todas as ruas vão dar à mesquita, que se situa no topo das aldeias. O minarete da mesquita, para além de chamar os fiéis para as cinco rezas diárias, também funciona como torre de controlo e costumava ser uma forma de comunicar com as outras aldeias.

Para terminar a nossa visita o nosso host e o seu amigo Kacem levaram-nos até a um miradouro onde conseguimos ver o mar de palmeiras que caracteriza o oásis deste vale. 


Os últimos raios de sol eram sinónimo que estava na hora de sair de Beni Esguin. Apenas os seus moradores podem ali pernoitar, não existem hotéis nem alojamento local para pessoas que não fazem parte da comunidade.

Já na “nossa” casa, o jantar foi servido. Uma travessa de frango assado, arroz, batatas e salada de onde todos comemos enquanto partilhávamos ideias, histórias e culturas.


Ghardaia: arquitectura islâmica sustentável

Sinto que posso ter inventado um conceito ao combinar as três palavras que mencionei neste título, mas a verdade é que aprendemos tanto sobre arquitectura na nossa visita ao centro histórico de Ghardaia e como ela define a vida no M’zab, que acho que faz todo o sentido.

O nome Ghardaia normalmente engloba todas as vilas e aldeias ali à volta. Ao contrário de Beni Isguen, Ghardaia já não é apenas um lugar histórico, intocado. Por fora das suas muralhas surgem casas modernas, escolas, mesquitas e hospitais. Algumas mulheres nem usam véus. 

Mas passando as portas da fortaleza, lá estávamos nós outra vez, na casa dos Ibadis. O Ibadismo é um ramo do Islão, tal como o sunita e o xiita. Desta vez, mesmo estando com dois locais, tivemos de ser acompanhados por um guia. Estes guias obrigatórios trabalham para o gabinete turístico de cada aldeia. Os seus serviços são gratuitos, mas no fim podes deixar sempre uma gorjeta. 


A coisa boa é que como eles nasceram e cresceram naquele meio, poderão responder a todas as tuas perguntas sobre o estilo de vida dos Ibadis

Dentro de Ghardaia aprendemos que as casas são feitas seguindo os princípios do Ibadismo. Todas as casas parecem iguais, independentemente da classe social de quem as habita. As portas são desencontradas para permitir dar privacidade a cada família. Cada casa tem um pátio e uma estrutura bastante simples. Há entradas diferentes para homens e mulheres. 

A argila é usada como isolamento térmico. No verão mantém as casas frescas, no inverno mantém as casas quentes. Os troncos das palmeiras também são usados com frequência. Aqui há um grande respeito pela terra e pelos seus recursos. Tudo é feito de uma forma sustentável e as aldeias do M’zab tornaram-se uma inspiração para vários arquitectos internacionais incluindo Le Corbusier. 


Os Ibadis vivem a sua vida em comunidade. Existe um conselho de pessoas que decidem as questões comerciais, judiciais e, em geral, governamentais. Apenas os casos mais graves chegam aos tribunais argelinos. 

Depois de termos absorvido toda esta informação, voltámos para o nosso oásis onde nos foi servida mais uma refeição inesquecível, cozinhada pelas mãos da mulher do Baelhadj: “pizza argelina”, também conhecida como Mahjouba


Durante as horas mais quentes, os nossos anfitriões deixaram-nos para uma sesta à sombra. Os planos para a tarde eram ainda uma incógnita. 

Jardin du Monde e uma figueira para a eternidade

“Vamos plantar uma árvore!”. Não sabíamos bem se isto era uma expressão argelina, uma metáfora ou se íamos literalmente plantar uma árvore. Claro que era a terceira hipótese. 

Munidos de uma pequena árvore, caminhámos até um oásis dentro do oásis. Ali, no meio do Vale do M’zab, começava a nascer uma empreitada que se desdobra em mil e um projectos. 

Um centro equestre onde se faz terapia com crianças autistas. Uma guesthouse construída com o preceito da tradição e materiais sustentáveis. Um jardim com árvores e plantas de todo mundo, algumas delas plantadas pelas mãos de viajantes. Uma infinity pool com vista para um mar de palmeiras. Um lugar de paz, reflexão e comunidade.  

O dono do projecto (não me lembro do nome dele), mostrou-nos cada cantinho com muito orgulho e carinho e no fim escavámos um buraco para plantar a nossa pequena árvore. Pode ser que lá voltemos um dia para ver como a nossa menina cresceu! 

O pôr do sol na colina mais próxima e a vista incrível a partir do minarete local foram a cereja no topo do bolo para terminar os nossos dias em Ghardaia. 


Nessa noite ainda fomos convidados para ir jantar a casa de um amigo do nosso anfitrião com quem nos tínhamos cruzado mais cedo. Comemos pratos deliciosos preparados pela mãe dele e travámos amizade com o seu papagaio falante. 

Fomos até Ghardaia sem planos, não fazendo ideia do que nos esperava. Descobrimos um lugar fascinante, com uma cultura vibrante e pessoas de uma gentileza e generosidade além de tudo o que já experienciei. Obrigada! 


As mulheres do M’zab

Não podia terminar este post sem falar das mulheres do Vale do M’zab. É difícil exprimir os meus sentimentos relativamente a este tema, uma vez que nem tenho bem a certeza daquilo que sinto. 

Parece que as mulheres são invisíveis e têm de ser invisíveis no Ibadismo. Cobrem-se com longas vestes brancas e mostram os dois olhos se forem solteiras ou apenas um olho se forem casadas. 

Grande parte da sua existência é passada dentro de casa. Raramente vão ao mercado, esta é uma das muitas tarefas reservadas para os homens. 

As casas estão ligadas entre si através dos telhados para que as mulheres se possam movimentar e visitar umas às outras sem passar pela rua. Todas as refeições que comemos foram preparadas por mulheres, mas nós nunca as conhecemos. Nem fotografias vimos, porque a partir da adolescência deixam de tirar fotografias. 

Aos nossos olhos isto é absolutamente sufocante. Ali faz parte de uma identidade comunitária, de uma religião, de uma cultura. 

Uma das maiores razões que me leva a estes lugares é tentar compreender, tentar aprender. Às vezes não sei se consigo.

Alfacinha germinada e cultivada num cantinho à beira mar plantado, a Inês tem uma certa inquietação que não a deixa ficar muito tempo tempo no mesmo sítio. Fez Erasmus em Paris, trabalhou em Istambul e em Portugal, fez um mestrado em Creative Advertising em Milão e agora trabalha no Reino Unido. Viajar, criatividade, cozinhar, dançar e ler são algumas das suas paixões. A combinação de algumas delas deu origem a este blog, o Mudanças Constantes. Bem-vindos!

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