Socotra

1# Diários de Socotra: Que lugar é este?

Socotra. Que lugar é este, desconhecido pela maioria das pessoas e um sonho para outras?

Apesar de ser daquelas pessoas com uma lista interminável de viagens para “fazer em breve” Socotra nem sequer constava da lista, porque não sabia que existia! Socotra entrou na minha vida através de um vídeo no YouTube e de uma conversa numa tenda beduína no deserto Wadi Rum, na Jordânia.

Não fui difícil de convencer. Bastou ver este vídeo que apareceu inusitadamente na minha página de recomendações e soube imediatamente que aquela seria a minha próxima viagem. Uma ilha remota, quase deserta, com paisagens inacreditáveis e virgens. Depois de dois anos de Covid, tinha finalmente encontrado uma aventura que me enchesse a alma!


Até que me apercebi que havia uma razão para a ilha ser tão intocada e desconhecida: é quase impossível de lá chegar! Com apenas um voo humanitário semanal, sem rede de transportes, ofertas de alojamento, supermercados e restaurantes ou qualquer outra infra-estrutura turística, visitar Socotra só é possível com a ajuda de uma agência. Como podes calcular, não é barato.

No fim desta série de posts vou dar mais informações sobre os custos e a preparação da viagem, mas vou só mencionar rapidamente que depois de muita pesquisa escolhi ir com a Welcome to Socotra e foi a melhor decisão que podia ter feito.

A vantagem de se viajar com uma agência é que só tens que pagar e aparecer. Assim foi. No dia 11 de Abril, dei por mim na porta de embarque com destino a Socotra no aeroporto de Abu Dhabi.

Senhoras e Senhores, estamos prestes a embarcar para uma nova realidade

Ainda nem tínhamos descolado, já parecia que estávamos num filme. Sem saber quem seriam os meus companheiros de viagem, observava todas as pessoas que entravam no avião com grande atenção.

Os turistas, meio a medo, sem saberem bem o que os esperava do outro lado e os Iemenitas e Socotris de armas (não literalmente) e bagagens a transportar bens de Abu Dhabi para voltar à sua terra natal ou visitar a família. Às mulheres, de niqab, só se viam os olhos, mas faziam-se ouvir! Não se queriam sentar ao lado de homens que não fossem da sua família. Estava instalado o caos.


Com muita paciência, as hospedeiras conseguiram sentar e acalmar toda a gente e em breve estávamos a ouvir uma oração em árabe antes de partir. Não sei se era por ser Ramadão ou se é sempre assim, mas para alguém como eu que tem medo de voar, uma oração não é bem-vinda!

O voo foi surpreendentemente tranquilo. Ao meu lado sentava-se uma russa com unhas de gel cor de rosa bebé, a combinar com o modelito, e eu perguntava-me se ela sabia que não ia ter casa de banho durante a próxima semana. Há um estranho nicho de turismo em Socotra de influencers russas que levam 50 mudas de roupa para tirar fotografias aprumadíssimas em paisagens paradisíacas. Felizmente, nenhuma delas se encontrava no meu grupo!

Só nos últimos minutos de voo é que se começou a ver a pequena ilha de Socotra. Lá estava ela: despida de prédios, estradas e indústria. Uma ilha deserta com uma pista de aterragem usada duas vezes por semana.


No “aeroporto” não há muito que enganar. Apesar de sermos só umas cem pessoas, toda a gente se empurrava como se estivéssemos na linha da frente de um festival. Aqui, o objectivo é simplesmente conseguirmos um carimbo no passaporte. No meio de toda aquela azáfama, um rapaz alto e muito bronzeado vem ter comigo e diz “és a Inês”. Tinha encontrado o meu guia!

Os grupos de viagem começaram a formar-se na recolha de bagagem. Era com aquelas pessoas que ía passar todos os minutos da próxima semana. Ao grupo de viajantes juntou-se ainda uma equipa de dez Socotris que se dividia entre condutores, tradutores, cozinheiros e monta/desmonta acampamentos. Com alguma timidez, trocaram-se os primeiros cumprimentos e fizemo-nos à estrada. Não havia tempo a perder, Socotra estava à nossa espera.


Uma terra de cabras e árvores estranhas

O aeroporto de Socotra fica ao lado da sua maior “cidade”, Hadibo. Parece que algures no tempo já houve mais gente e mais actividade económica por ali. Há construções e áreas de serviço que agora estão sob o domínio de cabras. As estradas que contornam a cidade estão cheias de lixo e a infraestrutura é quase inexistente. Consequências da guerra no continente e do isolamento geográfico da ilha. Aprendemos que tudo o que há foi construído ou pelos Emirados Árabes Unidos, ou pela Arábia Saudita.


Durante o caminho até ao nosso primeiro acampamento a paisagem transformou-se completamente. Passámos de uma região plana para uma zona quase montanhosa. As estradas de alcatrão passaram a ser de terra e cada vez mais estreitas.


Antes de chegarmos ao nosso destino, vimos as nossas primeiras “árvores garrafa”. Pessoalmente, acho que lhes podiam ter dado um nome mais simpático… Elas são tão fofinhas! Gordinhas e pequeninas, estas árvores são endémicas em Socotra e estão por todo o lado. Em Abril, floridas, estavam em todo o seu esplendor. A Ambra, uma italiana do grupo, apelidou-as de “ciciotello”, um nome que se chama aos miúdos quando são baixinhos e rechonchudos. Assim lhes chamámos o resto da viagem.


Foi aqui que também vimos as primeiras árvores de Incenso (Frankincense) e a primeira árvore “Sangue de Dragão” (Dragoeiro), mais uma espécie endémica em Socotra e uma visão majestosa que nos iria acompanhar nos próximos dias.


Piscina quase infinita e apresentações

O sol já baixava quando finalmente chegámos ao lugar onde íamos pernoitar. Trocámo-nos rapidamente para os nossos biquínis numa casa de banho (buraco com paredes) e fizemos uma curta caminhada até à piscina mais famosa de Socotra.

Em Abril, depois de meses sem chuva, a piscina de infinito pouco tem: o nível da água fica demasiado baixo para termos uma vista que não seja um calhau. Mesmo assim, um banho é sempre bem vindo e foi ali, numa piscina natural, no meio de uma “montanha” com vista para o mar que começámos a descobrir as personalidades do grupo.


De volta ao acampamento, as tendas estavam montadas e a mesa posta. Depois de um duche rápido no buraco com a Ambra – mais ninguém teve coragem para tomar banho – sentámo-nos para a primeira de muitas refeições deliciosas, cortesia do Chef Abdullah.

Nessa noite descobrimos que do nosso grupo faziam parte oito pessoas de sete nacionalidades diferentes e que éramos todos viajantes a solo. Na manhã seguinte iniciar-se-ia o ritual de acordarmos antes das cinco da manhã para vermos o nascer do sol. Sem álcool nem telemóveis, conversámos durante algumas horas e retirámo-nos para as nossas tendas. Os alarmes estavam postos para as quatro e meia da manhã.



O primeiro nascer-do-sol

Ainda meios a dormir e com uma lanterna na cabeça, voltámos a caminhar até à piscina infinito, desta vez com o ar frio da alvorada.

Em pouco tempo estávamos completamente acordados: parecia que tínhamos entrado num filme da Disney. Foi ali que pensei pela primeira vez “estou em África!”. O céu tinha-se tornado completamente amarelo e as formas das árvores garrafa e palmeiras, ainda nas sombras conferiam à paisagem uma aura de conto de fadas.


Chegados à piscina, penso que ficámos ali quase uma hora, em silêncio, a absorver aquele lugar. Esta é uma das coisas mais preciosas de Socotra. O silêncio e a lentidão do tempo.

Quando voltámos estava na mesa o primeiro de muitos pequenos almoços deliciosos com pão fresco, mel, queijo, fruta e até Nutella. Colchões, lençóis e almofadas no carro, tendas levantadas, estávamos de partida para o nosso próximo mergulho!


Águas esmeralda, homens das cavernas e Will Smith

À semelhança da Jordânia e de muitos outros países no médio oriente, em Socotra também há desfiladeiros para explorar. Num lugar onde está sempre calor, nada nos podia fazer mais felizes que um banho refrescante, mesmo que viesse acompanhado de uma caminhada de meia hora debaixo de um sol ardente.

Este foi um dos vários sítios em Socotra que serviram de inspiração para o mais recente filme do Jurassic Park e é fácil perceber porquê. A cor da água, as formas das rochas, o terreno árido, tudo praticamente intocado até aos dias de hoje. Provavelmente, não muito diferente do aspecto que tinha quando os dinossauros andavam por aí.


Quanto a nós, restava-nos mergulhar, flutuar e nadar. Até descobrimos umas pequenas cascatas que nos massajaram as costas como num spa!

Momento BBC Vida Selvagem: Os ingredientes para o almoço tinham sido distribuídos pelo grupo e eu fiquei responsável pelo pão. Ora, não estou habituada a ter que me preocupar onde deixo a comida quando vou ao banho. Quando o nosso guia, o Nicoló, reparou já estava um abutre egípcio a atacar esta parte do nosso almoço que eu tinha deixado ao Deus dará! Felizmente conseguiu-se salvar a maioria do pão e a partir daí tivemos mais cuidado com a nossa comida!

Almoçámos na sombra de uma pequena gruta onde começámos a partilhar histórias da nossa vida. Na hora da sesta (mais uma tradição) apareceu por lá um senhor que, pelo que percebi, vivia numa caverna ali perto e que queria conversa. Problema: ninguém conseguia comunicar com ele. A maioria desistiu até que um americano decidiu simplesmente começar a falar da vida dele em inglês. Nós, já meio a passar pelas brasas, ouvimos do nada “então e a estalada do Will Smith?!”. Para além de começarmos todos a rir, acho que também pensámos que se calhar seríamos mais felizes a viver numa caverna em Socotra sem nunca termos que ver pessoas a dar estaladas umas às outras por causa de uma piada!

Mais leves e frescos, regressámos ao jipe para uma viagem longa até ao sítio que mais queria visitar em Socotra: as dunas de Arher. Pelo caminho travámos amizade com uns camaleões que são os animais de estimação dos miúdos locais e que funcionam como chamariz de turistas. E não é que resulta?!



Dunas da altura de prédios e um merecido mergulho

Quando acordei da minha segunda sesta do dia (dêem-me um banco de trás num carro e eu adormeço instantaneamente) já estávamos na costa. O mar azul turquesa fazia-nos salivar por mais um banho. Sabíamos que o nosso poiso estava perto quando começamos a ver as enormes dunas junto às falésias.

Estas dunas, algumas de cem metros ou mais, formam-se com a força do vento na altura das monções. Ao contrário do sudeste asiático, a altura das monções em Socotra caracteriza-se por ventos fortíssimos, marés vivas e temperaturas altas. A costa norte, onde ficam as dunas, torna-se completamente inabitável.


Mas naquela tarde, estavam reunidas as condições para um banho épico ao pôr do sol a olhar para aquelas montanhas de areia branca.

Seguiu-se o segundo duche criativo da viagem, desta vez debaixo de um tubo posicionado estrategicamente numa rocha. Soube tão bem!


Adormecemos nas nossas tendas ao som das ondas do mar e debaixo de um céu estrelado.


Uma amostra de vento

Que rebaldaria é esta?! Acordámos com o barulho do vento e a sensação que iríamos voar mal saíssemos das tendas. Socotra tinha decidido dar-nos uma amostra da ventania que assola a ilha de Maio a Setembro.

Enquanto a equipa de suporte tentava encontrar pedras suficientemente pesadas para não deixar as tendas voar, nós tentávamos tomar o pequeno-almoço sem comer areia. A partir da mesa de refeições pudemos observar calmamente a minha tenda a fugir do alinhamento e a começar a dirigir-se em direcção à praia. Até as tendas são selvagens nesta terra!


Pelas oito da manhã o vento já tinha amainado e os jipes estavam à espera para nos levarem à nossa primeira grande caminhada: íamos subir ao topo de uma ridge! (não sei que nome dar a isto em português).


Dava uma capa do National Geographic

Não demorou muito tempo até estarmos desesperados por uma brisa que agora teimava em chegar. No dia mais quente de toda a semana, subimos pelas rochas, sem sombra, até uma das paisagens mais bonitas e cruas que já vi. A caminhada em si não é muito difícil, mas o calor torna cada passo um bocadinho mais sofrido. Mas quando escalamos a última rocha e somos confrontados com Socotra no seu estado mais puro, esquecemo-nos das t-shirts ensopadas e dos inevitáveis escalões.


Sem pressas, aproveitámos aquele lugar e começámos a descer. A descida foi muito mais divertida! Entre correr na areia e “perder-me” mais o Will (um americano) porque achávamos que sabíamos o caminho de volta, esta foi mais uma de muitas aventuras. Entretanto, percebemos que tínhamos ido demasiado para a direita e mesmo assim conseguimos ser os mais rápidos a chegar. Enquanto esperávamos pelos outros corremos até à água para refrescar e mais uma vez sentimos que estávamos no paraíso. Um sentimento que se repetiu durante a viagem toda.

Com o rebanho de novo junto, fomos almoçar.

A grande sesta de Socotra

Quando está demasiado calor não há nada melhor do que dormir a sesta à sombra e esperar que passe. Foi isso que fizemos, debaixo de umas rochas junto ao mar. Parecia uma migração de lontras.

Foi ali que vimos uma das espécies raras que já mencionei no seu habitat (anti)natural. Uma rapariga russa a tirar fotografias ao seu espectacular rabo. Aos rapazes locais quase que lhes caiam os olhos. Devem ficar fascinados com esta fauna exótica.

Pelos vistos este tipo de “conteúdos” pode pôr em risco o pouco turismo que resta na ilha, uma vez que o ministério do turismo do Iémen já levantou problemas a várias agências por causa das turistas que publicam fotos de biquíni em poses provocadoras na ilha.

Para nós, foi divertidíssimo de ver, claro, e inspirou muitas poses parvas nos dias que se seguiram!


O ponto mais a nordeste, peixes pouco inteligentes e partilhas

O fim do dia trouxe-nos uma temperatura mais simpática e a possibilidade de darmos mais que dois passos de uma vez sem suar. Partimos em direção ao nordeste de Socotra até uma praia cheia de tesouros.

Ali encontrámos ossos de baleia, esqueletos de golfinhos e tartarugas e milhares de peixe balão sem vida. Aquele era um lugar solene.


Momento BBC Vida Selvagem 2: Parece que os peixe balão não são criaturas muito inteligentes, eles suicidam-se sem querer. Quando a maré enche e os traz para a praia eles ficam stressados e incham e ao flutuar acabam por não conseguir nadar de voltar para o mar. Ali ficam, a morrer na praia, literalmente.

Quando o sol se pôs, a equipa de apoio pôde finalmente quebrar o jejum e comer tâmaras e fruta que partilharam com todos. A paragem final do dia seria numa aldeia local, para conhecermos mais a fundo a realidade de quem vive em Socotra.



A vida em Socotra e uma viagem pecaminosa

Já era de noite quando chegámos à aldeia que tinha umas dez casas e uma mesquita. Em cada “casa” vivem vinte ou mais pessoas incluindo mais crianças do que as que consegui contar. Sentámo-nos no páteo exterior a beber chá de gengibre com quilos de açúcar como é típico em todo o médio oriente e a conversar

Só os homens e as crianças interagiam connosco, as mulheres estavam noutra parte da casa à qual só as mulheres do nosso grupo tiveram acesso. Os miúdos, como todos os miúdos do mundo, brincavam e tentavam ensinar-nos a contar. O mais velho, com um inglês quase perfeito, dizia orgulhosamente que um dia haveria de ser director de um banco no continente. Esperemos que sim.

No lado das mulheres, jogava-se às cartas e faziam-se tranças. A primeira pergunta é sempre “és casada?” e a segunda “tens filhos?”. No nosso grupo ninguém era nem casada, nem mãe. Penso que ficam com pena de nós!

Na altura das despedidas já cada uma das raparigas do meu grupo tinha entre duas a três crianças pelas mãos que nos tinham adoptado como amigas.

Durante a viagem de carro até à aldeia tínhamos vindo a ouvir música e a cantar, o que não é muito bem visto durante o Ramadão. Contudo, o nosso condutor, o Salah, tomou-lhe o gosto e a viagem de volta ao acampamento foi uma loucura. Entre Britney Spears aos altos berros, o Salah em modo velocidade furiosa, e as nossas danças, penso que não podíamos ter tido uma viagem muito mais pecaminosa.

A partir desse dia o tradutor/guia local que nos acompanhou nessa viagem nunca mais pôs os pés no nosso carro. Mas lá que se divertiu, divertiu!


Um jantar Michelin

O dia tinha sido longo e quando chegámos ao acampamento estávamos todos esfaimados. E não é que à nossa espera estava uma Pasta alla Lagosta com lagosta suficiente para alimentar umas cinquenta pessoas se fosse num restaurante europeu?

É inegável que ter um líder de viagens italiano tem as suas vantagens e uma delas é ele ter ensinado os cozinheiros a fazer massa!


Durante o jantar recebemos a notícia que os despertadores iriam começar a tocar às 4:00 da manhã do dia seguinte. Parece que o melhor nascer do sol da ilha era o primeiro item da lista do nosso quarto dia em Socotra.

Alfacinha germinada e cultivada num cantinho à beira mar plantado, a Inês tem uma certa inquietação que não a deixa ficar muito tempo tempo no mesmo sítio. Fez Erasmus em Paris, trabalhou em Istambul e em Portugal, fez um mestrado em Creative Advertising em Milão e agora trabalha no Reino Unido. Viajar, criatividade, cozinhar, dançar e ler são algumas das suas paixões. A combinação de algumas delas deu origem a este blog, o Mudanças Constantes. Bem-vindos!

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