As religiões passaram milénios a vender um conceito intangível de paraíso quando podiam simplesmente ter dito “é como Detwah”. Simples e, quase que garanto, mais eficaz.
As nossas duas últimas noites em Socotra passaram-se à beira da lagoa Detwah, lagoa essa cuja existência eu desconhecia até o nosso jipe parar à sua beira.
Já a ressacar por um banho de mar, estávamos mortinhos para nos enfiarmos na água, mas ainda não era ali que íamos tirar a barriga de misérias. O nosso guia tinha um outro plano.
Certamente tem intervenção divina
Depois de deixarmos as coisas no acampamento tínhamos mais uma curta viagem de jipe pela frente até um miradouro. Em Socotra, um miradouro significa um conjunto de pedras para escalar. Antes de partirmos perguntei ao Nic, o guia, se podia ir de chinelas. Ele respondeu “tu podes”.
Depois de quase uma semana juntos, ele achou que eu era uma pequena cabra-montesa como ele, mas estava errado. Claro que teria sido muito melhor ter ido de botas de caminhada! Apesar dos nomes todos que lhe chamei, enquanto subia e descia desajeitadamente os pedregulhos em direcção à vista prometida, a verdade é que lá cheguei.
Ele sabia que uma vez lá em cima, não há como não esquecer tudo o resto. Mais uma vez, vindo de uma ateia ferrenha, podiam simplesmente usar aquela paisagem como prova que Deus existe.
Uma língua gigante de areia branca surge entre o mar mais cristalino do planeta e uma lagoa rodeada de montanhas rochosas. Tudo é perfeito.
Depois de muitos suspiros e de termos usado todos os adjectivos possíveis para descrever aquele lugar, estava finalmente na hora de mergulhar. Posso afirmar, aqui e agora, que foi o melhor banho de praia da minha vida e a melhor praia em que alguma vez estive. Não conseguíamos parar de sorrir!
Tínhamos a melhor praia do mundo para nós e para uns miúdos locais que apanham chocos e raias com as mãos e brincam com estrelas do mar. Penso que poderia ter ficado uma semana só naquele lugar.
O regresso até ao acampamento foi feito a andar pela lagoa e à chegada esperava-nos um peixinho grelhado e uma sesta à sombra. Já tinha mencionado que estava no paraíso?
Sobe e não olha: árvores fotogénicas e lanternas pouco fiáveis
As últimas horas de sol do dia iam levar-nos à árvore mais famosa de Socotra e ao pôr do sol mais épico que vimos. Para lá chegar, tínhamos que subir durante quase uma hora até ao topo de uma rocha bem alta. Como em grupo o passo de caminhada é diferente para todos, o Nic incentivou-me a mim e ao Will a descobrir o caminho por nós próprios apenas apontando e dizendo “é naquela direcção”. Mais uma vez: asneira.
Fomos por um caminho muito mais difícil e exposto que o caminho “oficial” e quando demos por nós estávamos a fazer escalada em vez de caminhar. Lá percebemos que devíamos ter ido para cima em vez de em frente e tentando não olhar para baixo, voltámos ao trilho suposto.
Ultrapassando os últimos obstáculos finalmente vimos não só aquilo que estávamos ali para ver, a árvore garrafa em flor, mas a lagoa na sua plenitude. Ali ficámos embevecidos, a tirar fotografias que nunca farão justiça à realidade e a conversar até não termos mais luz.
Antes de sairmos do acampamento o Nic tinha-nos avisado para levarmos as nossas lanternas. Nem todos tínhamos, mas entre telemóveis e lanternas, achávamos que estávamos preparados. Quando deixámos de ter luz natural e tivemos que ligar as lanternas começaram a surgir os problemas. Entre telemóveis cujas lanternas não ligavam e lanternas cuja bateria acabou em dez minutos (como a minha), passámos de umas seis lanternas a três.
O resultado foi um belo exercício de team building e uma descida muito lenta. Teve a vantagem de ser muito mais fácil descer do que subir porque como não conseguíamos ver o abismo ao lado dos nossos pés tínhamos mais confiança.
À chegada, encontrámos os nossos condutores à nossa espera que até puseram uma musiquinha para a nossa dança da vitória e celebração de sobrevivência.
Claro que nessa noite dormimos que nem uma pedra, embalados por mais uma refeição deliciosa e um banho a três.
“Esta é a minha aldeia”
O último dia da viagem surgiu mais depressa do que devia. Por mim tinha ficado mais uma ou duas semanas afastada da “civilização”. Não querendo perder o nosso último nascer do sol, recrutei o Will e subimos até um novo pedregulho para um momento de deslumbramento e contemplação.
Quando tanto o sol e o nosso grupo já tinham acordado, saímos em direção a Qalansiyah a segunda maior “cidade” de Socotra. Desta vez nós, as mulheres, tínhamos que deixar os calções e tops no acampamento e usar roupas um pouco menos reveladoras. Nesse dia éramos os convidados de honra de uma família Socotri para o almoço. E não era uma família qualquer.
A família do Abdullah, que também foi nosso guia nesse dia, vive numa aldeia a uma hora e meio de barco de Qalansiyah. Na aldeia habitam apenas membros da família dele, cerca de 50 pessoas. Ali, a consanguinidade é o pão nosso de cada dia.
Mas antes de lá chegarmos tínhamos a tal viagem de barco pela frente. Todos tínhamos algumas expectativas para este percurso, porque sabíamos que a probabilidade de vermos algo extraordinário era alta. Entre golfinhos, cardumes e até baleias, tudo depende da tua sorte!
Nesse dia o mar não estava tipo piscina e tínhamos pouco mais de dois ou três metros de visibilidade debaixo de água. Mesmo assim, avistámos um ou dois golfinhos.
Mas foi quando parámos perto de umas rochas para alguns dos nossos companheiros darem um mergulho que começámos a ver, não tão longe, mais e mais barbatanas de golfinhos a aparecer.
Os nossos capitães dirigiram-se para a zona rapidamente e do nada estávamos no meio de um grupo de centenas golfinhos! Apareciam de todos os lados, em todas as direções, a fazer mil e uma acrobacias. Foi um momento incrível onde fiquei muita grata por ter escolhido uma agência que nos permitiu parar e ficar ali a testemunhar aquele momento sem pressas de regresso!
Quando os últimos golfinhos passaram por nós, voltámos a ligar os motores e a fazer o troço final até à praia e aldeia de Shoab.
Como estávamos com o Abdullah, tivemos o privilégio de ser os únicos com autorização para visitar a praia e aldeia de Shoab. A família dele é dona daquela parte de Socotra e como tal só recebem quem querem. Antes de atracarmos os barcos ainda fomos buscar o almoço a um primo dele: lagosta!
A vida num (bonito) fim do mundo
Alguns rostos sorridentes e tímidos deram-nos as boas vindas enquanto entravámos num complexo de pequenas casas rudimentares. Quatro paredes, um telhado, uma porta e duas janelas pequeninas. No chão, tapetes para nos sentarmos e, como mobília, apenas um armário. Ali dormiriam pelo menos quatro ou seis pessoas quando os turistas desaparecessem.
Explicaram-nos que originalmente viviam noutra aldeia, ainda mais perto da água. Mas em 2015 Socotra foi atingida por um tornado e tiveram que fugir quando viram as suas casas destruídas pela força do vento e do mar. Durante a altura das monções não sei quanto a salvo estará esta nova localização, mas o tempo o dirá.
Explicaram-nos que ali são todos primos e falam com uma naturalidade desconcertante dos casamentos entre eles. Inicialmente pensávamos que estávamos a ouvir mal, mas rapidamente concluímos que não. Para dizer a verdade, Shoab é um lugar tão remoto que seria difícil não acontecer.
Visitámos a cozinha comunitária e outras casas parecidas à primeira onde fomos recebidos. E descobrimos novas técnicas para embalar bebés! Quando acabámos a visita encontrámos os famosos piratas da região. Não, não são os piratas da Somália e do filme Captain Phillips. São os miúdos que usam barris antigos como pequenos barcos e chinelas como remos.
Todos os dias brincam e fazem quilómetros daquela forma. Até nos deixaram experimentar! Claro que o nossos corpinhos de adultos não foram feitos para aquilo e em menos de nada estávamos a afundar os barcos enquanto os miúdos gozavam connosco.
Antes do almoço afastámo-nos um pouco da aldeia e fomos nadar debaixo de um sol escaldante. Claro que Socotra tem sempre uma surpresa preparada e durante esse banho duas tartarugas juntaram-se a nós.
Secos e vestidos, fomos chamados para o almoço. E que almoço. Estava servida a melhor refeição da viagem! Já tínhamos comido lagosta num dos primeiros dias, mas estas lagostas estavam cozinhadas na perfeição e acampanhadas de um dos melhores arrozes da minha vida. Acho que podia ter comido um quilo daquele arroz sozinha.
A sobremesa? Uma sesta, claro.
HOLD, HOLD, HOLD
Despedimo-nos da família do Abdullah a indagar como seria viver ali uma vida inteira. Na viagem de volta o vento tinha aumentado e não vimos mais vida marinha. O meu sonho de ver um tubarão-baleia tinha que ficar para a próxima.
Passado uma hora e pouco começámos a avistar Qalansiyah. Os contornos da cidade pescatória tornavam-se cada vez mais definidos e a velocidade do barco não parecia abrandar. Por outro lado, estava a aumentar!
Nos últimos 100 metros, quando já só me pergunto “mas que raio é que eles estão a fazer”?! Ouço-os a gritar “HOLD, HOLD, HOLD!” enquanto o nosso barco entrava a toda a velocidade pela areia dentro e nós somos projectados para a frente, uns mais preparados que outros. A Ambra foi parar às virilhas do Abdullah.
Não sei se alguém lhes mostrou filmes do James Bond ou da Missão Impossível e eles acharam que era uma boa opção atracar aqueles barquitos de madeira como uma lança supersónica, mas pareciam contentíssimos com as suas competências de condução de barcos.
Com os corações já a bater a um ritmo saudável, voltámos para os jipes e passámos a tarde qual bacalhau demolhado na lagoa de Detwah.
Momentos introspectivos e despedidas
Tínhamos chegado ao dia dos “últimos”. O último banho, o último pôr do sol, o último “duche”, o último jantar. Como o nosso voo tinha mudado de hora (o costume), na manhã seguinte já não teríamos tempo de fazer mais nada senão conduzir até ao aeroporto.
Uma semana não é muito tempo, mas quando se vive 24 horas por dia na companhia das mesmas pessoas em circunstâncias como as de Socotra, há um inevitável sentimento de camaradagem no ar. Enquanto vivíamos o nosso último pôr do sol, já não estávamos só a aparvalhar, mas também a reflectir sobre aquela semana e o que nos levou a descobrir aquele estranho lugar que se tinha revelado absolutamente magnético.
Depois do jantar, sentámo-nos todos mais o staff com um copo de chá na mão, enquanto um por um expressámos, com mais ou menos palavras, os nossos agradecimentos por o que aquela equipa fez por nós durante aqueles dias. A verdade é que eles trabalham incansavelmente, mesmo durante o Ramadão, para ter a certeza que nada nos faltava.
Nessa noite fomos dormir um pouco mais cabisbaixos que nas noites anteriores, mas com um despertador posto para tão cedo como o costume.
A viagem de Detwah até ao aeroporto foi tão bonita, com os raios de sol a penetrar pelas montanhas, que fiquei ainda mais triste por me estar a despedir daquele lugar.
Já no aeroporto dissemos adeus à equipa que tão bem nos tratou durante aquela semana e ao Nic que foi uma mistura de nosso pai e amigo. Passada a segurança, que inclui umas boas apalpadelas por parte de mulheres Socotris de burca numa cabine, sentámo-nos à espera do avião enquanto encontrávamos uma ou outra pessoa com quem tínhamos trocado palavras uma semana atrás antes de embarcarmos nesta aventura.
Agora cada um tinha o seu grupo. Foi aqui que percebemos que tínhamos feito a escolha certa em ir com a Welcome to Socotra. Apesar de toda a gente ter gostado da experiência, havia algumas queixas com coisas com as quais nunca tivemos que nos preocupar.
Duas horas depois, já em Abu Dhabi, o momento inevitável da despedida tinha chegado. Entre algumas lágrimas, fizemos promessas de nos tentarmos voltar a ver algures no tempo. Algumas reuniões já aconteceram, outras talvez nunca irão acontecer. Ficam as memórias dos momentos incríveis que partilhámos neste lugar tão único e especial que é Socotra.
O meu relato acaba aqui, espero ter conseguido transmitir um bocadinho da magia de Socotra. Se tiveres alguma dúvida ou questão, pergunta aqui ou no Instagram!
Dicas e informações úteis sobre como viajar para Socotra
Agência: A escolha que vai definir a tua viagem. Penso que hoje já haja mais alguma informação online, nomeadamente no Trip Advisor, sobre as diferentes agências que operam em Socotra. Em Abril de 2022, a ilha acabava de abrir ao turismo depois do Covid e as reviews eram escassas. Felizmente encontrei a Welcome to Socotra que, apesar de um número suspeito de cinco estrelas, me pareceu a melhor opção. Depois da minha viagem, percebi por que é que todas as reviews deles eram tão boas. Podem ser a agência mais cara da ilha, mas também é a agência que te leva a todos os sítios de difícil acesso e que tem a melhor comida. Se gostas de caminhar e queres experiênciar Socotra a sério, esta é sem dúvida a escolha certa.
Custos & dinheiro: Devo dizer que o pessoal que gere a Welcome to Socotra não foram feitos para responder a e-mails. Secos e directos, não falam com muita simpatia ou floreados. Em pessoa são cinco estrelas. Mas quando estás prestes a enviar milhares de euros para um banco no Abu Dhabi, parece um pouco suspeito.
Quando fui, e não sei se os preços continuam iguais, paguei 1650 USD por transferência bancária e depois levei mais 1170 USD para pagar o resto. Os dólares têm de ser emitidos depois de 2009.
Convém levares mais uns 70 a 100 dólares como gorjeta que são distribuídos por toda equipa no fim.
Incluído no preço está: Voo de ida e volta de Abu Dhabi para Socotra, visto do Iémen, uma semana de alojamento (tendas, colchões, almofadas e lençóis), três refeições diárias, água, transporte (jipes) e acompanhamento do guia.
Altura do ano: Socotra está fechada ao turismo de Junho a Setembro por causa da época das monções. Pessoalmente acho que ir do fim de Abril ao início de Outubro é um pouco arriscado porque ainda podes levar com o resto do mau tempo.
Eu fui no início de Abril e, apesar de ter visto a piscina infinito com pouca água, foi uma boa altura porque as árvores garrafa estavam todas floridas! Penso que do fim de Fevereiro ao início de Abril seja a melhor altura para visitar Socotra.
Voos e estadia em Abu Dhabi: Para chegares a Socotra precisas primeiro de chegar a Abu Dhabi. Só existe um voo por semana até à ilha que é marcado pela a agência e faz parte do preço.
Eu cheguei a Abu Dhabi com a Wizzair e voltei com a Emirates, mas parti de Londres. Aconselho-te a chegar um dia antes do teu vôo e a marcar o regresso um dia depois de voltares de Socotra, porque os voos para Socotra mudam de horário constantemente e mais vale prevenir que remediar. O aeroporto de Abu Dhabi tem um Permier Inn que dá imenso jeito para quem não tem muito tempo entre voos.
Fazer a mala: O clima em Socotra pode ser um pouco agreste, principalmente no que toca ao calor. É indispensável levar chapéu e boné, protector solar e idealmente tecidos leves e largos que cubra bem os ombros, peito e braços para não te transformares numa lagosta como eu. Mesmo com cuidado fiquei muito escaldada.
Se fores mulher, leva umas calças largas e uma t-shirt sem decote para os dias em que tens que voar e ir às vilas e aldeias. Não é preciso cobrir o cabelo.
Em termos práticos, uma lanterna para a cabeça é indispensável. Não há rede na ilha, por isso a bateria do telemóvel dura mais! Podes carregar o telemóvel e outros dispositivos com USB no carro, mas não vai haver tomadas. Uma power bank dá jeito.
Toalhitas biodegradáveis, champô e condicionador em barra e sabonetes também são bem vindos. Eu também levei uma máscara de snorkeling para não ter que alugar lá.
Interferência com os Estados Unidos: Se decidires ir a Socotra ficas impedindo/a de pedir o ESTA para visitares os Estados Unidos. Para visitares o país terás que ir a uma entrevista na embaixada. O lado positivo é que depois ficas com um visto de dez anos para visitar os Estados Unidos. O custo são 160$ e tens que fazer tudo com tempo porque muitas vezes são precisos vários meses até se conseguir uma entrevista.
Nota sobre o Dubai: Inicialmente o meu plano era visitar Abu Dhabi durante um ou dois dias, nomeadamente o Louvre e a famosa mesquita Sheikh Zayed Grand Mosque. Contudo, as regras COVID do Abu Dhabi era mais estritas do que as do Dubai e acabei por ter que passar lá um dia. Foi o lugar que já visitei que menos gostei. É um sítio sem graça nenhuma, sem alma. Um parque de diversões para adultos ricos. Se tiveres que lá ficar e precisares de um alojamento barato, eu fiquei no 1 World Dubai que apesar de não ser nada de especial, está bem localizado – ao lado de uma praia com vista para arranha céus… – com acesso a pé até ao metro que te leva ao aeroporto.