Quirguistão

Köl-Suu: beleza com dor se paga

Quando marcamos férias em Agosto não estamos bem à espera de enfrentar neve, ventos cortantes e um frio que nos gela até ao tutano. Para mal dos nossos pecados o Inverno do Quirguistão decidiu estrear-se mais cedo este ano e como tal lá tivemos que aguentar os cavalos (literalmente) e aproveitar, em hipotermia, os fabulosos lugares onde nos encontrávamos.

Aquela típica paisagem de Agosto…

Como sobrevivemos parece que valeu a pena, mas comecemos pelo princípio, que este dia até amanheceu com temperaturas positivas.

+5º Celcius: Lago Chatyr e um aceno à China

Levantámo-nos com a mesma roupa que tínhamos usado durante todo o dia anterior e não ousámos sequer pensar em mudá-la. Depois de sentirmos o frio da manhã nas nossas nalgas na casa de banho ao ar livre e de comermos mais um bocado de compota (nesta altura já não podia ver compota à frente) e pão seco, enfiámo-nos no carro enquanto nos despedíamos da anciã Tash Rabat.

Pela frente tínhamos uma viagem de cinco horas até ao próximo acampamento de yurts, mas com paisagens assim a viagem até podia durar 10 horas. A primeira paragem foi no Lago Chatyr.

Iaques <3

A uns meros dois ou três quilómetros da China encontra-se este lago, de um profundo azul-mar, onde mais uma vez nos encontrámos sozinhos, tendo apenas o som dos nossos passos e respiração como companhia.

Na estrada, a presença da vizinha China lembra-nos o quão agradável é não termos fronteiras físicas visíveis na Europa: centenas de quilómetros de arame farpado não alegram ninguém.

Antes de enveredarmos pela estrada de gravilha que nos ia levar ao acampamento do dia, o nosso guia avisou-nos (várias vezes) que íamos passar pela última estação de serviço onde podíamos comprar vodka naquele dia. Para seu desapontamento só comprámos água.

0º Celcius: Quem precisa de uma porta quando se tem uma vista destas?

Depois de passarmos rios com o carro, fotografarmos iaques e atravessarmos pontes de madeira em processo de apodrecimento, mal podíamos acreditar no que se passava diante dos nossos olhos: estava a nevar! Em pleno mês de Agosto estava a nevar!

Sorridente o nosso guia dizia “olha, parece que este ano o Inverno veio mais cedo!” e nós só vimos a nossa vida a andar para trás. Era neste tempo que íamos fazer um passeio a cavalo? Pelos vistos era.

Cavaleiro das Trevas!

Poucos minutos depois de estacionarmos já o sol se fazia sentir e lá estavam os nossos yurts, no meio da neve, a dar-nos as boas vindas. Numa primeira (de muitas) visita à casa de banho percebi que estava ali um bom trono – esta tinha mesmo uma sanita plantada no cimo de uma fossa – para apreciar a paisagem e contemplar o significado da vida. Afinal, sem porta, tinha uma vista privilegiada para as maravilhosas montanhas que nos rodeavam.

Dentro da casa de banho…

Há que saber apreciar estas pequenas coisas!

-10º Celcius: “É muito giro, mas podemos ir embora?!”

Em menos de nada estávamos em cima dos cavalos que nos iam levar ao lago Köl-Suu. Como companhia tínhamos um guia que parecia ter idade para ser nosso filho e um cãozito que também não sabia bem ao que ia.

Ora bem, o hipismo está longe de ser uma das minhas especialidades e o meu cavalo percebeu logo isso. Enquanto os outros iam ordeiramente pelo caminho suposto o meu adorava ou tentar voltar para trás ou pastar lentamente enquanto eu lhe puxava as “rédeas” (que é como quem diz corda de atacadores) para o fazer andar.

As paisagens eram soberbas e nestes lugares onde raramente nos cruzamos com outros seres humanos impera uma paz única. 

Por ser tão remoto e pela necessidade de uma permissão especial, o lago Köl-Suu sempre nos pareceu um sonho algo irrealista, mas agora estava mesmo ali à nossa frente. A única diferença é que no nosso sonho não estávamos em hipotermia. As mãos e os pés já estavam a passar para o mundo dos mortos e eu estava bastante certa que em breve o resto do corpo se seguiria.

Permitimo-nos andar por ali uns cinco a dez minutos até que achámos que tínhamos atingido o nosso limite, iniciamos a cavalgada de volta, desta vez com animais mais motivados pois em breve iam ver-se livres de nós.

Já mais à vontade, o nosso guia (que afinal tinha 15 anos) mostrou-nos algumas das suas habilidades com os cavalos e os meus amigos lá galoparam com ele planície fora. Eu fiquei-me por um trote tosco e com umas dores de pernas e rabo que duraram cerca de quatro dias a passar.

Para os que estão a pensar no que aconteceu ao cãozito que vinha connosco, foi levado de volta porque só gania, uma vez que era mais ou menos da altura da camada de neve que cobria o chão.

0º Celcius: A agonia e as estrelas

Viajar em lugares tão remotos como os confins da Ásia Central tem os seus prós e contras. Se por um lado estamos a explorar lugares puros e intocados, por outro temos que nos sujeitar às condições e infra-estrutura que há.

Apanhar uma gastroenterite nestes países é quase certo e já apanhei muitas na vida, mas nunca tinha apanhado uma tão debilitante. Não sei se foi uma combinação de altitude com bactérias, mas o que é certo é que demorou quase uma semana até voltar a ter fome e comer normalmente.

Tudo começou nesta noite. Já sabia que não estava muito bem por não ter consigo comer quase nada durante o dia todo, mas foi quando acordei com uma vontade indomável de vomitar (algo muito raro em mim) que soube que não estava bem. Não querendo ser muito gráfica, passei mais tempo na casa de banho do que na cama.

Espelho meu, espelho meu, haverá casa de banho mais bela do que eu?

Mas se era para passar horas numa casa de banho, que fosse naquela! Iluminadas pela luz da lua, à minha frente estavam umas montanhas lindíssimas e no céu brilhavam as estrelas que não se deixavam ofuscar. Que belo lugar para fazer um detox intestinal…

Eventualmente foi este dia que acabou por mudar o curso da nossa viagem, porque percebemos que íamos sofrer demasiado (talvez seja esse o propósito da vodka) para aproveitar e valorizar o Quirguistão. Contudo, não há nem uma ponta de arrependimento quanto a esta viagem e há até uma grande vontade de voltar para explorar o que não conseguimos explorar.

A nossa última paragem no Quirguistão foi o Lago Song Kol.

 

 

Alfacinha germinada e cultivada num cantinho à beira mar plantado, a Inês tem uma certa inquietação que não a deixa ficar muito tempo tempo no mesmo sítio. Fez Erasmus em Paris, trabalhou em Istambul e em Portugal, fez um mestrado em Creative Advertising em Milão e agora trabalha no Reino Unido. Viajar, criatividade, cozinhar, dançar e ler são algumas das suas paixões. A combinação de algumas delas deu origem a este blog, o Mudanças Constantes. Bem-vindos!

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