Quirguistão

Tash Rabat: nos confins de um país nos confins do mundo

Numa viagem em que tudo depende do tempo e onde o tempo é tudo menos previsível, manter os planos em aberto é a chave. O Quirguistão é um dos países mais montanhosos do mundo (com uma elevação média de 3000 metros!) e portanto aquela velha máxima das “quatro estações num dia” não podia ser mais verdade, sendo que a estação Inverno tem primazia sobre as outras.

A previsão de chuva para a nossa caminha de três dias ao lago Ala-Kul desfez o meu belo plano de Excel e trocou-nos as voltas. Pondo todas as opções em cima da mesa decidimos atravessar o país de norte a sul num dia, de Bishkek a Naryn, e a partir daí arrancarmos para a uma das zonas mais remotas do país: Tash Rabat e o Lago de Köl Suu.

A nossa linda marshrutka
A Deusa do CBT

O Quirguistão despertou em mim o meu lado mais insensato: chegámos a Naryn sem nada marcado. Saímos da nossa marshrutka directamente para o CBT de Naryn com esperança que alguém nos ajudasse.

CBT traduz-se em Community Based Tourism e é o resultado de um esforço comunitário para usar o turismo como uma forma de rendimento sustentável, dinamizando uma região e melhorando a qualidade de vida dos seus habitantes.

Em 15 minutos tínhamos os próximos três dias planeados. A gestora daquele CBT – cujo nome não me lembro e como tal chamar-lhe-ei “a Deusa” – é possivelmente a pessoa mais eficiente do mundo. Depois de ter olhado para nós e decidido que “não éramos caminhantes confiantes” explicou-nos rapidamente o plano que tinha desenhado. Nós só tivemos tempo de acenar com a cabeça.

Tash Rabat seria a primeira paragem

Como íamos estar na zona fronteiriça com a China era obrigatório ter uma permissão específica que normalmente deve ser tratada com uma semana de antecedência. Mas nada era impossível para a Deusa e em duas ou três horas tínhamos nas mãos o papelinho mágico que nos abriria as portas para o último pedaço de Quirguistão antes da China.

Estrada para Tash Rabat a poucos quilómetros da fronteira com a China

Por fim, ainda nos disse que o melhor lugar para comer em Naryn era no bazar e, apesar de nos terem apresentado um menu em Quirguiz que nem o Google conseguia descodificar, lá nos serviram aquela que foi de facto a nossa melhor refeição no Quirguistão. E mais barata: 4.5€ para três pessoas!

Tash Rabat e um gostinho de vida nómada

Na manhã seguinte conhecemos o Mirlan que ia ser o nosso condutor, e um bocadinho guia, durante os três dias seguintes. Tivemos sorte porque ele desenrascava bem o inglês e era aberto às nossas questões sobre o Quirguistão e também curioso sobre os costumes Europeus. Afinal só tinha 32 anos, apesar dos quatro filhos.

A estrada até Tash Rabat foi-nos mostrando o potencial das paisagens do Quirguistão e quando o carro parou foi como se um novo mundo se tivesse desvendado à frente dos nossos olhos: rodeados por montanhas altas e verdejantes estavam cerca de 10 yurts que seriam o nosso lar por um dia.  

Para nos ajudar a imaginar como seria este recôndito tesouro na altura da Rota da Seda ainda somos presenteados com uma “caravancerai” um género de hospedaria para viajantes e mercadores com mais de 500 anos, recentemente restaurada, e cujo interior é tão enigmático que nem historiadores sabem bem o que por ali se passou. 

Rapidamente fomos nós que nos tornámos na maior atracção de Tash Rabat sendo requisitados para fotos e para conversas que não entendíamos. Ao almoço fomos apresentados à duvidosa cozinha nómada que consiste em caldos com batatas cozidas, especiarias e carne.

Demasiado entusiasmo para a comida que vinha aí…

A comida podia não ser a mais inspirada, mas o ambiente deu asas a uma intensa conversa sobre crises de petróleo e desvantagens do capitalismo – quem diria que mentes brilhantes se cruzariam nos confins do Quirguistão.

A cozinha

O resto do dia foi passado a caminhar na companhia de um cãozito que apelidamos de “saucisson” e que adorava tentar caçar marmotas. Apesar de não termos feito o percurso completo (tínhamos começado muito tarde) as paisagens nunca desapontam.

O meu momento preferido foi já quase ao pôr-do-sol, quando as nuvens finalmente dispersaram e, duma montanha, me sentei a processar a imensidão daquilo tudo que estava a ver, sem distracções e em silêncio absoluto.

À mesa, sem telemóveis

Acho seguro afirmar que a 3000 metros de altitude nunca está calor. Assim que o sol se pôs começámos a perceber que não estávamos minimamente preparados para o frio que íamos sentir durante as duas próximas noites até porque tanto para comer, como para ir à casa de banho, tínhamos que sair de perto da única fonte de calor que havia: o “forno” a lenha instalado em cada yurt.

O yurt comum

Mas se há vantagens no sofrimento humano é o sentimento de união que se forma no grupo que sofre. Ao jantar, enquanto descongelávamos no yurt comunitário onde eram servidas as refeições, conhecemos um casal de franceses e outro com uma holandesa e um espanhol. A tertúlia durou a noite inteira até sermos literalmente expulsos porque desligaram as luzes. No fim, todos reflectimos sobre as maravilhas de conversar sem a presença de telemóveis e como nos sentimos mais presentes no momento, sem a necessidade de o partilhar com mais ninguém.

A noite prometia chegar aos zero graus, mas embalada pela conversa e cerveja a 3000 metros, dormi que nem uma pedra, debaixo dos sete quilos de cobertores que tinha em cima.

Dicas rápidas

Marshrutka Bishkek – Naryn: Pelas 8 da manhã fomos até à estação de autocarros de Bishkek (Western Bus Station) para apanhar a marshrutka (um mini-bus que leva cerca de 15 a 20 pessoas) até Naryn. No Quirguistão nada tem horários e os autocarros e táxis partilhados partem quando estão cheios. Nós pagámos cerca de 4€ cada por uma viagem de 5 horas e pouco.

Viagem pelo CBT ou de forma independente: o CBT de Naryn é conhecido como sendo um dos melhores do país e de facto tudo correu às mil maravilhas connosco. O preço para três dias de tour e duas noites com tudo incluído (incluindo o passeio a cavalo) foi de 110€ por pessoa + 25€ por pessoa para a permissão da fronteira com a China. Viajar de forma independente pode ser mais barato, mas também é mais incerto e demorado. De qualquer forma é possível e nós até vimos pessoas que fizeram a viagem até Tash Rabat à boleia.

Caminhada Tash-Rabat – Chatyr Lake: Se vieres com a ideia de fazer a caminhada até ao topo da montanha que tem uma vista espectacular para o Lago Chatyr, começa cedo. Nós queríamos fazer essa caminhada, mas demora cerca de 8 ou 9 horas ida e volta por isso é um projecto de dia inteiro. Também dá para fazer a cavalo e também há a opção de fazer a descida até ao lago, mas a Deusa disse que era muito difícil!

Um adeus da nossa amiga “Claquette”

Alfacinha germinada e cultivada num cantinho à beira mar plantado, a Inês tem uma certa inquietação que não a deixa ficar muito tempo tempo no mesmo sítio. Fez Erasmus em Paris, trabalhou em Istambul e em Portugal, fez um mestrado em Creative Advertising em Milão e agora trabalha no Reino Unido. Viajar, criatividade, cozinhar, dançar e ler são algumas das suas paixões. A combinação de algumas delas deu origem a este blog, o Mudanças Constantes. Bem-vindos!

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